quarta-feira, 15 de dezembro de 2010





"Não era ódio, era amor ao contrário" Clarice Lispector



19 de fevereiro é dia do Descaminho de Santiago em São Paulo.

Um dos Caminhos de Santiago que você conhece é aquele que vai da França até Santiago de Campostela, na Espanha, onde os peregrinos fazem o seu percurso espiritual.

Mas agora, no dia 19 de fevereiro, sábado, em São Paulo, vai acontecer o outro caminho de Santiago. Isso mesmo: O desCaminho de Santiago, que vai sair da Praça da Sé e terminar no Itaim Bibi, depois de uma bela caminhada cruzando a cidade.

Um dia para quem quer desfazer erros, desmistificar ícones, desenhar outros sonhos, descomplicar a vida. Um dia sabático para andar, pensar, encontrar amigos e também se encontrar.

Ou simplesmente um dia para acompanhar o escritor Silvio Piresh, que vai peregrinar e lançar o seu livro O desCaminho de Santiago na Pça da Sé e em mais 10 livrarias durante o percurso dessa Via Láctea.

Durante o trajeto, haverá a promoção chão de estrelas: o escritor passa e jogará estrelas-brindes para trás que darão direito ao seu novo livro.

Não perca. Dia 19 de fevereiro é dia de andar. Ou desandar. Vem junto.




O desCaminho de Santiago - roteiro.

- Saída: Pça. da Sé - 10 horas (Livraria Unesp)
- Pça. Dr. João Mendes
- Av. da Liberdade
- Rua Vergueiro (Livraria Leia Mais)
- Rua Bernardino de Campos (Livraria Book Stop)
- Av. Paulista - 12 horas (Autógrafos na Livraria Saraiva)
- Av. Paulista - 15 horas (Livraria Martins Fontes)
- Av. Paulista - 16 horas (Livraria Cultura)
- Rua da Consolação
- Al. Santos
- Rua Augusta
- Al. Franca
- R. Pe João Manuel
- Al Lorena
- Rua Pamplona
- Rua Estados Unidos
- Rua José Clemente
- Rua Madre Teodora
- Av. Brigadeiro Luiz Antonio
- Av. Brasil
- Rua Bento de Andrade
- Rua Oliveira Dias
- Rua Joaquim Floriano
- Rua Bandeira Paulista
- Chegada: Rua Tabapuã - 18 horas (Autógrafos Livraria Capítulo 4)



Livraria Capítulo 4 - Rua Tabapuã, 830 - Itaim Bibi.

Manobristas no local. Ou estacionamento fácil e gratuito na própria rua.

Autógrafos: dia 19 de Fevereiro, sábado, a partir das 19 horas.




Cap. 1


o
Não é quarta-feira, não é quinta, não é ontem, nem amanhã, apenas meia-noite. O relógio para, meia-noite de um ser. Paula Lemarca? Pelo menos eu era até ontem. Agora, quem pode saber? Uma mulher até certo ponto feliz, arquiteta, bem-sucedida. Eu mesma, até que ponto? Agora tudo é falência, Ana-Lélia. Podia ter sido diferente? Uma história mais possível e humana? E se fosse, o que você teria com isso? Faria qualquer sentido o caos ou a coerência? Não. Hoje não existe Deus senão a mulher. Ele que nunca existiu senão na cabeça dos homens. Sinto porém que estou caindo. Embora ao rés do chão, estou caindo. Ainda que sentada e recostada à porta da igreja, caindo. É uma queda tão igual como se estivesse no cimo da torre. Tão igual e funda. Porque é uma queda para dentro. O maior precipício tem a minha altura, já sei. E não é pouco. Continuo caindo, Ana-Lélia, porém olho para cima. E não vejo nada. Nenhuma estrela nesse céu, só uma mulher cadente. E o Cão Maior ladrando luz. Não há beleza alguma na queda, cruel-Lélia. Apenas vertigem. Nem o caleidoscópio de cores e cáries serve para nada. Fim ou início, a queda. Minha cabeça dói, sinto tontura. Abraço minhas pernas, triângulos fechados. E não sinto o coração bater mais contra o seio, amortecido. Por sua vez, a solidão me abraça. E o coração que aí não existe bate contra o meu. Agora mesmo deixo de abraçar minhas pernas, adormecidas, para abraçar a mim mesma. Cruzando os braços no peito, como um W. Faltam braços, não é a mesma coisa. Não, não é. Os outros é que nos devem abraçar, tem que ser assim. Amor-próprio é lasso, não serve. E depois ninguém aceita autopiedade por muito tempo. Os outros é que nos têm que ter, ainda que mal. Porque nunca que saberemos amar a nós mesmos. Não fomos feitos para isso, qualquer animal de estimação será mais amado. Qualquer gato doente. No alto, um morcego traça sucessivas parábolas para se desviar da torre. Ou às vezes para se refugiar dentro dela. Cega estou eu que da vida não sei desviar. Ainda que, arquiteta, tivesse o volume e a linha. Ainda que o traço estivesse em outra escala. E que a vida me projetasse para outro porvir. Cega, sob este arco tão antigo e traçado da porta, fechada por dentro, aberta então para fora, não acho o meu ponto de fuga. Como que, seguindo de perto tuas pernas, eu ainda não me encontrasse. Não tenho asas e me sinto um pouco velha e feia. E você, Ana-Lélia, sempre tão bonita. Desde menina. Não que eu fosse diferente, ao contrário até. Aliás, muito pelo contrário. Mas, perto de você, quem podia se comparar? Eu nasci primeiro apenas. E o mesmo ventre de mãe logo depois trabalhou tanto cada detalhe que deu você, deusa ainda com cara de joelho. Acho que foi por aí que tudo começou. Se por fora nunca tão bonita, por dentro eu seria mais. Eu só via esse caminho. Isso que eu pensava. A minha pele de dentro seria mais bela, e a sua, Ana-Lélia, superficial. Sem surpresa para ninguém. Seria como sem abrir uma ostra: se não ainda a pérola, pelo menos o grão. Tempo. Era tudo o que eu precisava. A planície inteira o meu caminho. Os Alpes, a folga. Exatos trinta anos até chegar a mim, até este estado de graça. De quase santificação. De bondade mais pura e plena. De dor, sobretudo, se se chega até aqui. E depois? Talvez, confesso agora, que de olhar para você, Ana-Lélia, eu salivasse tanta sede nesse pequeno grão de areia e ciúme. Porque, se você não lembra, eu sim. Muito bem. Porque você, Ana-Lélia, não foi diferente de nenhuma criança ao nascer. Era suja e chorava, chorava e fedia. No começo eu tinha até nojo. Horas a parteira ficou lá no quarto, porta fechada, mãe gritando. E aquele cheiro. Alho, placenta, urina, fezes? Você veio assim, nessa seda. Embrulhada. Depois, outros panos. Um casulo branco, nos braços de alguém. Vi depois águas e sobras e alva placenta ser enterrada. No canteiro. Uma roseira branca crescia no mirrado jardim, lembra? Gatos da vizinhança andavam por ali de quando em vez, possíveis arqueologias. Lembro com saudade esse nojo. Sentimento que eu queria agora. Juro que eu queria, Ana-Lélia. E não consigo. O coração é que está envolto em seda, impermeável, puro, no seu ofício de distribuir sangue e riqueza. Também, tanto tempo. Ele na cadência, eu incerta agora. O sangue em outro ritmo, a estação outro moinho. Moendo cada palavra, cada grão. Eu, pedra. Pedra de mó. Depois, crescida e bonita, roubou até meu nome. Melhor, os outros é que roubaram por você. Pior é que você aceitou. Muito pior eu ter aceitado. Estranho? Eu era Ana Paula e virei apenas Paula. E você que era apenas Lélia ficou Ana-Lélia. De tão bonita e sempre andando agarradinha a mim ninguém via Ana Paula e Lélia, mas Ana-Lélia e Paula. Foi assim. Lembra até uma outra história. De orquídea, sim. Aquela das epífitas. Epífitas, Ana-Lélia. Você e eu, igual metáfora? Espécies parasitas que apenas utilizam as árvores como suporte para o seu desenvolvimento. Não que eu seja o tronco e você a orquídea, nada disso, é abstrair demais. Mesmo durante todo esse tempo. Depois, com você junto eu também ficava mais bonita. A orquídea é o carrapato da árvore. E você, é verdade, tinha o meu sangue. Duro, às vezes, era ver você ser polenizada por homens, insetos. Eu, quieta como árvore. E, como árvore, em eterno movimento. Enquanto eles buscavam você, eu procurava a beleza interior. E por ser boazinha também atraí homens. Boazinha, veja só. Hoje eu quero sentir raiva e nada. Nada. Não sou capaz de sentir qualquer coisa. Meu estado de graça que me deixou assim. De tão sensível, fiquei insensível. Mas, Ana-Lélia, eu não quero ser nenhuma Madre Teresa. Eu quero é mais sentir raiva, ser humana. Demasiado humana. Ou desumana, que deve dar no mesmo. Há anos que peguei outro caminho. Como se volta? Desassossego é ser atalho para os outros. Ser usada. De tanto desbravada, virar alma calma, capim. O que eu quero dizer mesmo não digo, Ana-Lélia. É até bonito o seu nome ligado, hifenizado ao meu. Ou ao que era meu um dia. Ana, esse nome agora é seu. Pode ficar, disse eu aquele dia. Não sinto falta, casca para mim. Por suas raízes, sempre abraçada. Não foi tão ruim para quem buscou a casca de dentro. Até que gostei. Ajudou até ontem, hoje não mais. Hoje, só depois que o tempo resolver andar. E sair dessa meia-noite. A porta está aqui, fechada para mim. Eu que estou aberta para a porta. Mesmo no limiar de pedra, a porta me atravessa, entra em mim. Ao mesmo tempo ela é meu lado de fora.Você pode achar que eu estou mentindo, Ana-Lélia. Que é mais uma daquelas histórias, alegorias. Mas não é, Ana-Lélia querida. O tempo parou mesmo. Meu relógio de pulso, igualzinho ao seu, parou. O ponteiro das horas está sob o ponto dos minutos, que está sob o ponteiro dos segundos. Todos uns sobre os outros. Todos sobre a meia-noite. Vai dizer que é só meu relógio. Que o seu de igual modelo continua funcionando. Pode até ser, que o relógio, por solidariedade, deu defeito. E, por isso, parou. Se é assim, por que então o relógio da igreja também parou? Tem que ver, a agulha parou exatamente quando deu o último badalo. Se não pode ver de onde está, pode ao menos ouvir. Por que a décima-segunda badalada ainda ressoa por toda a volta? E há quanto não foi isso? Se você ainda está na Casa das Marinhas, pode ouvir. Perfeitamente. Não vá fazer como sempre. Para me contrariar vai dizer: Não estou ouvindo nada não, você é que deve estar ouvindo coisas. Sinos, Ana-Lélia, sinos. Você pode ouvir sim, a não ser que esse bastardo esteja com a língua na tua orelha. Ou em outro lugar, e aí, sim, é que não dá para ouvir. Desculpe, não torno a falar assim. Vou me comportar. Você sabe que não é isso que eu sinto. Ainda não. Neste instante, sou uma mulher dividida. Não é a vida multifacetada? Poesia que resta. Até ontem, você sabe, o que eu pensava era o que sentia. E o que eu sentia era o que eu pensava. Agora eu sou uma mulher fugindo de mim mesma. O coração há anos foi ficando assim, bate do seu jeito, independente, não obedece à ira do cérebro. Na sua pequena cela, gaiola de ridentes costelas, vai piando. Esse o relógio que ainda não parou, Ana-Lélia querida. Tem vida própria, parece. Depois de tudo, ainda é capaz de perdoar. Perdoa e até compreende, coeur sanctus. Outro traidor. Você vai pensar que não é bem assim. Quem perdoa e até compreende não é o coração, mas a cabeça. E eu não vou dizer que não. Confusa demais para achar qualquer coisa. Tudo bem, então estou com a cabeça no lugar do coração e, ao contrário, pensando com os ventrículos. Mas não quero ficar mais assim, dividida. Quero ser una e, em vez de perdoar, eu quero odiar. Odiar com todas as forças. Odiar. Boazinha? Quanto tempo perdi para chegar até esta meia-noite. Quantas voltas dei para dentro. Esse DIU emocional. Se toda a vida fui seguindo esse caminho, por que a dúvida? Desprendida de tudo sempre, por que não agora? Só porque entrou homem na história? Que não é o caminho para Deus isso eu já sabia. Mas por que não? Talvez não o melhor lugar para fazer isso. Porta da Igreja de Santiago. Mas é onde estou. Fecho os olhos, imagino, tento, tela branca à frente, minha lanterna mágica. Projeto aí todas as minhas sombras e medos. Todos os pensamentos de que me envergonho, maldades que me orgulho. Faço isso não como um exercício de paz: quero ira. E me concentrar. O coração, ele que bata quatro por quatro. Tudo o que eu fiz até aqui agora me envenena. O que era bom me faz mal. Trinta anos buscando o caminho do bem. Para chegar até esta praça. Preciso outra vez me percorrer, ver onde errei, se o caminho todo, se numa ou noutra passagem. Não posso viver se não reviver. Há vida antes da morte. Não posso terminar aqui, nesta porta, antiga e ainda fechada por algumas horas, para sempre até amanhã. Nesta porta incensada por pedidos e orações. E, noto agora, por urina de cachorros que vêm delimitar outros domínios. A noite quente eleva como preces esses cheiros desconfortáveis. Não tenho escolha: se não é aqui, no degrau desta porta, são os degraus da escadaria. Ainda mais conspurcados, por tocos de velas, santinhos, chicletes, vômitos e pombas mortas (...)




2 comentários:

  1. Genial!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    Aplausos..
    Rosa Pena
    http://www.rosapena.com/

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  2. Sílvio,

    Não somente pelo texto fluido - e pelo estilo consistente e arrebatador (esteticamente, em certo aspecto, me lembrou Adonias Filho) -, como também pela abordagem temática, seu livro é contemporaneamente forte! Haja vista o apelo ora suscitado pelo filme "Cisne Negro", cuja protagonista em muito lembra a sua Paula Lemarca, tal como colocado por você, nesta página, na própria sinopse: "Há o necessário ato de cortar o dedo de outra mulher (...) Enfim, ela se sente bem fazendo o mal. Encarna a máxima que a volúpia única e suprema do amor é a certeza de fazer o mal. Uma história que hoje não deixa de ser oportuna justamente por isso mesmo: permite sentir, viver e morrer de amor. (...) Um descaminho, que pode ser atalho para se chegar a cada um de nós." Analogias - imagísticas e cognitivas - com a personagem vivida por Natalie Portman. Tal como expresso numa das falas do longa, de forma marcante, pela ricamente complexa Nina, quando é feita a referência de cada pessoa ser única e decisiva em seu próprio caminho.

    Parabéns! Está mesmo antenado literariamente com a sensorialidade e a essência da história, excelente mote para os desafios psíquicos de tempos como os nossos, onde as pessoas têm travado lutas consigo próprias!... Vou querer ler a obra inteira!

    Beijos :)

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